A tutela das famílias simultâneas: privilegiando a realidade em
detrimento de ficções jurídicas
A monogamia sempre foi palco de acalorados debates em toda a
história de nossa cultura.
Não é de hoje que se discute a possibilidade de se estender a
todos a obrigação, imposta por lei, de se manter relações afetivas com apenas
uma única pessoa de cada vez. Jorge Amado, em um de seus mais famosos romances,
Dona Flor e seus Dois maridos, publicado em 1966, retrata, ainda que com um
realismo fantástico (já que um dos maridos estava vivo e o outro não passava de
um fantasma), a convivência contemporânea de uma mulher com dois homens.
Para Dona Flor, cada um deles era importante e a satisfazia em
diferentes dimensões e aspectos de sua vida. No ano de 2000, o filme Eu, tu,
eles, baseado na vida de Maria Marlene Silva Sabóia, fez enorme sucesso no
cinema e na televisão ao retratar a vida de uma cortadora de cana do nordeste
brasileiro que vivia com três maridos.
A telenovela Passione apresentava como uma de suas tramas
centrais a complicada relação do italiano Berilo e seus dois amores: Jéssica e
Agostina. Controvérsias à parte acerca do caráter da personagem Berilo, a
novela demonstrou como o rapaz amava verdadeiramente as duas mulheres e
necessitava de ambas para se realizar no âmbito familiar plenamente. Ao final,
um arranjo familiar foi harmonicamente acertado entre os três e força a todos a
suscitar a seguinte questão: Até que ponto o Estado possui legitimidade para
entrar em uma esfera tão íntima e privada dos cidadãos para dizer-lhes como e
com quem cada um deve se relacionar?
Por fim, mais recentemente, a última novela da Rede Globo a
tratar do tema foi Avenida Brasil, que retratou a tríplice vida de Cadinho e
suas mulheres: Noêmia, Verônica e Alexia. Na mesma novela, a polêmica Suelen
estabeleceu família poligâmica com Leandro e Roni. De novo, a pergunta se faz
pertinente: Até que ponto e de que maneira é legítima a aplicação irrestrita e
linear do princípio da monogamia em nossas práticas sociais e sua assimilação
por nossa ordem jurídica, de maneira a tornar obrigatório a todos, sem
exceções, o dever de lealdade e fidelidade em qualquer um dos tipos de
entidades familiares protegidos pela ordem jurídica brasileira?
Tais perguntas se fazem pertinentes visto que o princípio da
monogamia é um relevante princípio de direito de família e determina os limites
impostos pela ordem jurídica para a organização da família conjugal. Está
previsto expressamente para o casamento (art. 1.521, Código Civil) e também
integra o regime jurídico da união estável, conforme se depreende do artigo 1723,
§ 1º, CC; também entendemos que ele ainda se estende às uniões homoafetivas, e,
portanto, está presente em qualquer entidade familiar conjugal.
Contudo, a verdade é que o Direito de Família brasileiro avançou
muito e se modernizou, principalmente, porque passou a admitir que família não
é um núcleo formal, ou seja, formatado segundo padrões impostos pela lei. O
termo família diz respeito ao conteúdo destes núcleos sociais, ou, em outras
palavras, à qualidade das relações afetivas travadas entre as pessoas que
compõem a entidade familiar.
Estas relações precisam ser caracterizadas pela existência de
mútua cooperação, assistência moral e material, cuidado, afeto, solidariedade e
responsabilidade, pois estes são os únicos pilares sobre os quais é possível promover
a dignidade de seus componentes e o livre desenvolvimento de suas
personalidades. Uma família deve ser o lugar onde temos a oportunidade de
ser quem efetivamente somos.
Por força deste panorama, o princípio da monogamia tem
apresentado alguns abalos sistêmicos, pois sua plena eficácia colide com a
ampla proteção da pessoa humana, do sujeito concreto permeado por diferentes
necessidades e liberdades. Nesse sentido, julgados na seara do direito
previdenciário vêm apresentando tendências à quebra da aplicação irrestrita do
princípio da monogamia em todos os casos. O fundamento dessas decisões
encontra-se na própria ratio do direito previdenciário, porquanto este se
consubstancia no princípio da solidariedade, tendo em vista que sua finalidade
é evitar o desamparo material após a morte de um ente do qual se presume a
dependência econômica, no âmbito de uma família.
Diante disso, não é raro encontrar decisões como esta: RECURSO
ESPECIAL. PENSÃO PREVIDENCIÁRIA. PARTILHA DA PENSÃO ENTRE A VIÚVA E A CONCUBINA.
COEXISTÊNCIA DE VÍNCULO CONJUGAL E A NÃO SEPARAÇÃO DE FATO DA ESPOSA.
CONCUBINATO IMPURO DE LONGA DURAÇÃO."Circunstâncias
especiais reconhecidas em juízo". Possibilidade de geração de direitos e
obrigações, máxime, no plano da assistência social. Acórdão recorrido não
deliberou à luz dos preceitos legais invocados. Recurso especial não conhecido.
(STJ, REsp 742.685 – RJ, 5ª T., Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, J. 4/8/2005)
Ficou claro nesse acórdão a impossibilidade do Poder Judiciário ignorar situações
que, embora estejam “à margem” do direito posto, estão constantemente a
produzir hipóteses concretas geradoras de efeitos jurídicos.
Pois, da mesma maneira como a arte imita a vida, o mesmo ocorre
– ou deveria ocorrer - com o Direito. Essa profunda reformulação nas bases
gerais do Direito de Família tem conduzido muitos tribunais brasileiros a
decidir importantes casos para afirmar a possibilidade de a ordem jurídica
reconhecer, e proteger como famílias, núcleos afetivos paralelos formados, por
exemplo, por indivíduos que vivem ao mesmo tempo um casamento e uma união
estável ou duas uniões estáveis concomitantes, desde que, independente dessa
(com)formação plúrima, tais núcleos apresentem um conteúdo marcado por relações
de afeto, solidariedade, assistência e cuidado, acima de tudo.
Outro exemplo disso a inusitada decisão do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais, proferida em dezembro de 2008: DIREITO DAS
FAMÍLIAS. UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPORÂNEA A CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE
DE RECONHECIMENTO FACE ÀS PECULIARIDADES DO CASO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Ao longo de vinte e cinco anos, a
apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo, que possibilitou o
nascimento de três filhos. Nesse período de convivência afetiva - pública,
contínua e duradoura - um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente,
materialmente, fisicamente e sexualmente. Durante esses anos, amaram, sofreram,
brigaram, reconciliaram, choraram, riram, cresceram, evoluíram, criaram os
filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do
casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo
objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o fato
de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente.
Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a
existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e
preconceito em matéria de Direito de Família. No caso dos autos, a apelada,
além de compartilhar o leito com o apelado, também compartilhou a vida em todos
os seus aspectos. Ela não é concubina - palavra preconceituosa - mas
companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união
estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e
sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade
jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável, quando um
dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do
Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se
uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social
que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo.
A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera
efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento
ilícito de um companheiro em desfavor do outro. (TJMG, Apel. Cív.
1.0017.05.016882-6/003(1), 5ª CC, Rela. Desa. Maria Elza, J. 20/11/2008, DJMG
10/12/2008).
A aprovação da nova Lei que regulará o Direito de Família brasileiro,
batizada de Estatuto das Famílias, reacendeu essa calorosa discussão, por força
da interpretação bastante equivocada e radical que foi conferida ao §1º do
artigo 61 desta nova Lei: “A união formada em desacordo aos impedimentos legais
não exclui os deveres de assistência e a partilha de bens”. Com base nesse
dispositivo legal, foi amplamente divulgado que a nova lei prevê a
possibilidade de pensionamento para o(a) amante. Mas não é essa a interpretação
mais correta que se deva dar a este artigo, que representa verdadeira evolução
em nossa legislação – aliás, como o Estatuto globalmente considerado.
O sistema de impedimentos legais para o casamento consiste em
uma série de proibições circunstanciadas que retiram de certas pessoas em
determinadas hipóteses a legitimidade para se casar, significando substanciais
restrições à sua possibilidade de escolha, como no caso de casamento celebrado
entre ascendentes e descendentes (ex. pais e filhos) ou entre parentes
colaterais até o 3º grau (ex. irmãos), dentre outras hipóteses. Esses
impedimentos se justificam na atualidade muito mais por razões morais do que
por argumentos jurídicos, embora se fundamentem em questões morais que são
ordenadoras da nossa cultura.
Uma das proibições para o casamento, de fato, é que pessoas
casadas não podem se casar novamente, sob pena de bigamia. Contudo, como já
afirmado aqui, a despeito da forte marca do princípio da monogamia em nossa
ordem jurídica, em muitos casos concretos a aplicação deste princípio tem
cedido espaço para aplicação de outros princípios como o da responsabilidade,
solidariedade, afetividade e dignidade E isto tem possibilitado o
reconhecimento excepcional – e não como regra – de famílias
simultâneas ou paralelas.
Deste modo, este artigo significaria proteção jurídica para
aqueles que vivem em uniões familiares plúrimas, assim reconhecidas pela ordem
jurídica, ante a comprovação de necessários requisitos. Neste caso, não
estaríamos a tratar de pensionamento para os amantes, mas sim para membros de
uma família legitimamente reconhecida como tal[1]. E isso significa uma
verdadeira mudança de vértice no Direito das Famílias que não é mais possível
ignorar.
A ideia da tutela das famílias simultâneas – e não estamos falando
de proteção aos amantes, à relação fugaz, temporária, que não cria um vínculo
verdadeiramente familiar – é um imperativo atual que deve comportar as exceções
à tutela ao princípio da monogamia, ainda hoje vigente, mas permeável o
suficiente para albergar exceções que as peculiaridades do caso concreto possam
construir.
Tal situação – impensável há alguns anos atrás – não deve ser
encarada por nós, cidadãos, como um retrocesso jurídico, mas como uma evolução
do Direito, já que o propósito é a proteção da realidade em detrimento de
ficções jurídicas. Afinal, a que serve o Direito, senão proteger as aspirações
individuais e coletivas, especialmente quando elas se concretizam no âmbito de
núcleos familiares, que hoje são um dos meios, dos lugares privilegiados para
que a pessoa possa se realizar enquanto tal, vivenciar as experiências mais
importantes de sua vida, a partir da convivência e da corresponsabilidade.
A questão principal é que o atual ordenamento jurídico pode – e
deve – valorizar “o mundo da vida” e não apenas a forma em que a vida se
revela, tendo em vista o seu compromisso fundamental com a pessoa humana e do
modo com que ela, potencialmente, pode se realizar.
Sem dúvida, portanto, o §1º do artigo 61 do Estatuto das
Famílias representa um substancial avanço não apenas jurídico como social, já
que tutela as efetivas escolhas pessoais, que foram o ponto de partida para a
formação de novas entidades familiares, as quais – simultâneas ou não – acabam
por significar efetivamente, um núcleo de compromisso e solidariedade, que
deve, por isso, gerar todos os efeitos jurídicos.
Afinal, se de fato as pessoas desse núcleo cumprem funções que
aqui chamamos familiares umas na vida das outras, devem ser valorizadas pelo
Direito, em virtude da afetividade e da solidariedade familiar, instrumentos
realizadores da dignidade de seus membros.
[1]
LIMA, Renata Rodrigues de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Da simultaneidade
nas relações familiares: as uniões dúplices são uma questão de direito? In:
Direito das famílias entre a norma e a realidade. São Paulo: Atlas, 2010, p.
116-139.
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